Quebrando o silêncio no Sul de Hebron

É preciso maturidade. Virtude esta a qual não tenho certeza se possuo, mas que constantemente me exponho a situações nas quais pelo menos me ponho a pensar. Quebrar o silêncio, mas qual silêncio? O silêncio de mais uma sociedade, que sabe que peca, por “um bem maior”, mas que não gosta de enfrentar as faces dessas atitudes (como a maioria de todas as outras).

Não tenho prazer algum em escrever sobre o conflito no Oriente Médio. Tenho ido a fundo nas diversas facetas deste Estado, pesquisando e dividindo com países em desenvolvimento o que esta sociedade construiu – e vem construindo – ao longo de sua breve existência, mas também buscando acompanhar o que acontece no famoso conflito. Mas desta vez me expus a uma organização fundada em princípios nos quais baseio minha vida. Inquietude e histórico com educação não formal fizeram com que soldados de uma unidade específica do exército israelense parassem para pensar. E com isso, começaram uma mobilização . Breaking the Silence é uma oportunidade de expor e tentar compreender o que significa na prática uma ocupação militar.

Saímos mais uma vez pela manhã. No ônibus, turistas diferenciados: gente que acordou cedo pra ver e criticar o que o Estado de Israel – por meio de sua instituição militar – está fazendo na chamada ocupação militar de regiões pós fronteira de 1967. Na grande maioria, gente já com idéia formada.  O guia? Um ex-soldado que serviu ali mesmo, no sul de Hebron.

A verdade é dura de escutar. Ao mesmo tempo, somente em um Estado democrático e pensante como este, há a possibilidade da discussão sobre temas tão dolorosos e delicados como os expostos ao longo do dia. São pelo menos três os atores principais da triste novela que se desenha diariamente nas regiões A, B e C, sob diferentes intensidades de controle entre a Autoridade Palestina e o Estado de Israel: militares e assentamentos (judeus e palestinos).

Temos o costume de ler as notícias, as novidades sobre essa região e olhar a situação de uma certa distância, fazendo generalização e definindo grupos ou instituições como culpados. A oportunidade de ir até lá, conversar e refletir um pouco me deixa um pouco triste. No fundo, não são grupos étnicos, instituições políticas, militares ou terroristas. No fundo são pessoas envolvidas na situação (para o bem e para o mal).

Uma família cujas terras atualmente têm a infelicidade de estarem em território disputado, um jovem de 18 anos cuja atual obrigação é representar a política de seu país e cujas mãos atam-se em hierarquias e ideologias. Uma massa de manobra facilmente maleável por grupos cujas formas de ação são bastante questionáveis. Um Estado aflito e as conseqüências dessa aflição para não-cidadãos.

Claro, o tour não é necessariamente bem visto por todos os lados. Alguns os chamam de traidores, outros não aceitam o que chamam de falso arrependimento. A polícia da fronteira por mais de uma vez nos parou para entender o que fazíamos (mesmo que na maioria das vezes já soubessem). Um diálogo chamou a atenção e mostra a importância de um país democrático e livre, mesmo sob alguns espaços dominados por uma lógica militar.

Alguns soldados da fronteira conversando com meu guia Ayal – eles dentro de um veículo militar, Ayal na rua:

-Bom, o que você esta fazendo aqui?

-Estou acompanhando este grupo. Somos do Breaking the Silence, você deve nos conhecer (com um sorriso no rosto)

-Você é ex-soldado então?

-Sim, por coincidência servi na mesma unidade de vocês.

-E qual é o plano?

-O de sempre, mostrar um pouco da realidade do que se passa por aqui. E discutir.

(Um soldado sentado no banco de trás) – Você então está falando super mal de nós, certo? Dando sua visão do que fazemos por aqui.

-Sim.

(todos riem)

-Ok, bom dia e bom tour.

-Bom dia e bom trabalho.

Fiquei encantado com o diálogo. Não pelo conteúdo, não fico de maneira alguma feliz que a situação é a situação. Mas a liberdade de expressão, a valorização do questionamento e a possibilidade de crítica é rara de se ver em outros lugares por ai. Quantas vezes você acha que alguém poderia entrar numa favela, questionar a atuação do estado ou da polícia lá dentro (colocando todos os dados e atores na mesa) sem ser de alguma forma repreendido? Mais importante do que isso, quantas ex-policiais, ex-políticos (se é que isso existe) ou ex-servidores públicos temos por ai quebrando o silêncio e expondo nossas próprias políticas de segregação no país?

A realidade nem sempre é bela, mas pode estar aberta ao diálogo, à reflexão e a ação. Sem dúvida o que se vive por aqui não é o tempo inteiro bonito de se ver (e digo isso vindo de todos os lados), mas é importante deixar a informação disponível para críticas e mudanças.

Selecionei dois vídeos de meu próprio guia, Ayal Kantz, do site do Breaking the Silence. Eles dizem bastante coisa para mim. (sem dúvida, você pode pesquisar outros vídeos no site e encontrar outros depoimentos que vão causar distintos sentimentos). Os dois que escolhi falam um pouco do que mexeu com o meu entendimento.

Why I break the Silence – Ayal Kantz

 

“We are the good guys”

A quem interessar: PDF’s com as publicações dos depoimentos de soldados israelenses está em: http://www.breakingthesilence.org.il/testimonies/publications

O do sul de Hebron é: http://www.breakingthesilence.org.il/wp-content/uploads/2011/07/Soldiers_Testimonies_from_the_South_Hebron_Hills_2000_2008_Eng.pdf

4 opiniões sobre “Quebrando o silêncio no Sul de Hebron”

  1. Que oportunidade estar ai e poder fazer parte dessa discussão…
    muito bom o texto, continue compartilhando isso.
    a cara nova do blog esta ótima tb 😉

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  2. Bi, entendo seu comentario. Me sinto assim tambem muitas vezes. Ao mesmo tempo, nao ha como negar a liberdade de expressao e questionamento que ainda exite nesse pais – sem garantia nenhuma de ate quando isso vai se manter….
    Quase 100% dos “civis” israelenses sao militares, eh um dado forte. A grande maioria da sociedade israelense tem passagem pelo servico militar (com as excessoes de quem conhece o funcionamento das coisas por aqui) mas isso nao os deixa necessariamente com a logica miliar como unica alternativa, e sim os qualifica como atores qualificados nessa discussao (muito mais do que,eu, com certeza)
    Democratico e livre para todos seus cidadaos. O problema esta no conceito de cidadao. E isso, com certeza e um grande problema.Fica implicito no meu texto que nao estou satisfeito com o que vem acontecendo, mas que ao mesmo fico interessado na abertura e nas possibilidades de critica existentes por aqui (dificil de encontrar em outras autoridades politicas da regiao).
    Nos nao eramos judeus no tour. Eramos turistas. (ninguem nunca perguntou minha religiao ou nacionalidade em nenhum momento). A maioria dos participantes do tour era nao judeu, e isso em momento algum pareceu importante. O que estava sendo discutindo ali eram as consequencias de uma ocupacao militar por parte do estado de Israel sobre uma regiao ainda em transicao.
    Garanto, depois de 5 meses exposto a diversas situacoes, nao ha ingenuidade superficial de minha parte. Mas as vezes tambem e importante observar a situacao de onde nos cabe.

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  3. Boa Alex, bem legal o texto e bem polêmico assunto.

    Só para botar um pouco de lenha na fogueira, não sei se eles comentam no tour sobre a história da comunidade judaica de Hebron. Não acho que tenha nada a ver com a forma como os palestinos são tratados ou com a estupidez que é colocar um destacamento inteiro do exército para proteger um assentamento incrustado no meio dos palestinos, mas vale a pena saber que sempre houve uma comunidade judaica lá durante os 2000 anos de Diáspora. E pouca gente se lembra de como essa comunidade acabou massacrada pelos árabes em 1929. Enfim, o meu ponto é que eu não vejo problema em judeus morarem lá. Pelo contrário, é um dos lugares sagrados para a religião e acho que eles deveriam poder viver ali. No entanto, isso não justifica a ocupação militar e tudo que decorre.

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  4. Bianca, seu comentário demonstra uma profunda falta de conhecimento sobre Israel, a vida lá e suas dinâmicas. Talvez fosse o caso de viver lá por um tempo para fazer críticas tão carregadas de rancor com mais propriedade. Mas, principalmente, seu comentário mostra um entendimento muito equivocado sobre a função do estado judeu. Israel não se coloca como seu representante (ainda que ignorantes possam pensar assim pelo simples fato de você ser judia). Israel é sim um porto seguro, que vai te acolher quando quiser ou precisar, seja pelo motivo que for.

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